Por: Frei Betto*, em Adital
A história da América Latina é rica em líderes sociais que
encarnaram, em ideias e atitudes, utopias libertárias. Raros, entretanto,
aqueles que, se por milagre ressuscitassem do túmulo, se deparariam com a
realização efetiva de seus sonhos e projetos. Um deles é José Martí, que veria
na Revolução Cubana que seu sacrifício não foi em vão - morreu de armas nas
mãos, em 1895, defendendo a emancipação de Cuba do domínio espanhol.
Sua luta disseminou raízes que floresceram no projeto de
soberania e libertação nacionais, com expressiva ressonância internacionalista,
realizado pelo povo cubano nas últimas seis décadas, sob a liderança dos irmãos
Fidel e Raúl Castro.
Graças a Martí, a Revolução Cubana preservou a sua
cubanidade, a sua originalidade, sem se deixar engessar por conceitos
dogmáticos que, em outros países socialistas, produziram tão nefastas consequências.
Martí tinha o dom de ser um homem de ação sem deixar de ser um intelectual
refinado, um pragmático e um espiritualista. Jamais perdeu o senso crítico e
mesmo autocrítico.
Martí viveu 15 anos nos EUA, em Nova York, entre 1880 a
1895, quando ali vicejava uma radical transformação que imprimiria ao
capitalismo seu caráter agressivo. Ao mesmo tempo, possibilitou-lhe o contato
com o que havia de mais avançado nos pensamentos filosóficos, científicos e
espirituais. Na sociedade norte-americana, Martí constatou o que significa um
desenvolvimento econômico centrado na apropriação privada da riqueza,
indiferente às reais necessidades humanas, e como essa concepção egocêntrica
limitava a vida espiritual.
O papel de Cuba no equilíbrio da América Latina e do Caribe
deita raízes no século XVIII, quando, graças à influência do enciclopedismo, a
cultura cubana ganhou identidade e expressão. Dentro desse processo
destacaram-se homens de profundo senso espiritual, como o bispo Espada, Félix
Varela, Luz y Caballero, para culminar em Martí e naqueles que ele formou, como
Enrique José Varona, mentor dos jovens universitários nos primórdios do século
XX.
O que marcou a geração de Varela, Luz e, em seguida, a de
Martí, foi a capacidade de assimilar as novas ideias iluministas sem despregar
os pés do solo latino-americano e caribenho. Há um princípio de educação
popular que bem se aplica a essas figuras históricas, e também explica a
originalidade de seus pensamentos: a cabeça pensa onde os pés pisam.
Nas pegadas do ideário que os movia estava o sofrimento dos
povos indígenas e dos escravos, a sanha colonialista, a luta pioneira de meu
confrade, frei Bartolomeu de las Casas, os princípios cristãos da radical
sacralidade de cada ser humano, considerado filho amado de Deus, independentemente
de sua classe, etnia ou atividade social. A luta por liberdade e justiça foi
iniciada, em nosso Continente, pelos povos indígenas. Milhões foram
encarcerados, enforcados, queimados vivos, decapitados e esquartejados. Tupac
Amaru clamou contra a opressão colonialista. Hatuey, líder indígena de Cuba,
foi queimado em uma fogueira. Consta que, ao lhe perguntarem se queria aceitar
a religião de seus algozes espanhóis, de modo a garantir seu lugar no Céu,
perguntou se eles também, ao morrerem, iriam para o Céu. Ao responderem que
sim, Hatuey disse que não queria estar com eles no Paraíso... Também mulheres
indígenas, como Bartolina Sisa e Micaela Bastidas, lutaram e morreram em defesa
dos direitos de seus povos.
Todos esses antecedentes explicam a Revolução Cubana e por
que ela se destaca como fator de resistência na América Latina. Antes da
vitória em Sierra Maestra, nosso Continente era zona de ocupação e extorsão,
exploração e submissão aos países mais poderosos do Ocidente. A Revolução
Cubana deu um basta ao imperialismo, resgatou o espírito de soberania dos povos
caribenhos e latino-americanos, despertou a consciência crítica de nossa gente,
fomentou movimentos libertários, comprovou que a utopia pode, sim, se
transformar em topia, e que a esperança nunca é em vão.
Cuba venceu o colonialismo espanhol eliminando a escravatura
e assegurando a sua independência como nação. Com a vitória da Revolução, impôs
limites à expansão imperialista dos EUA.
Ali ocorreu um movimento de libertação nacional que abraçou
o projeto socialista. Mas o equilíbrio se manteve. Martí não foi trocado por
Marx; a fé religiosa dos cubanos não foi eliminada pelo materialismo histórico
e dialético; a arte não se deixou descaracterizar pelos estreitos limites do
realismo socialista. Aquilo que no pensamento europeu soava como antagônico,
aqui na América Latina e no Caribe se revelou paradoxo. O que parecia
irreconciliável do outro lado do oceano, aqui apresenta convergência, como o
marxismo destituído de dogmas e o cristianismo desprovido de arrogância
elitista, mas sensível ao clamor dos pobres, o que resultou na Teologia da
Libertação.
* Frei Betto é escritor, autor de "Cartas da
prisão" (Agir), entre outros livros.
www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
Fonte: http://www.alainet.org/active/61285