Uma
palavra e um gesto anacrônicos
Dizer
amor em tempos de ódio é um gesto anacrônico. Um gesto inatual, fora de época.
Portanto, um gesto que pode causar vergonha ou pelo menos inibição em quem se
preocupa com a relação entre discurso e ação.
É o
sentimento de inadequação diante da expressão do amor que está muito mais
presente em nossas vidas atualmente. Quantas vezes não recuamos do desejo de
manifestar amor por não saber como sua expressão pode ser recebida? Quantas
vezes não o controlamos dentro de nós mesmos por achar que o amor não faz
sentido? Pensar assim é inevitável quando todos nós estamos confusos com o que
chamamos de amor porque a delicada planta do amor não anda tendo espaço para
crescer nesse mundo em que a cultura do ódio avança tão rapidamente quanto o
desmatamento da Floresta Amazônica, quanto a indústria bélica, o consumismo, os
latifúndios, a economia dos ricos cada vez mais ricos, o autoritarismo…
Para bom
entendedor, meia palavra basta, mas ela não tem sido a palavra amor. Quem diz
amor se sente fora dos jogos de linguagem do nosso tempo. Isso quer dizer que a
palavra e a coisa estão ligadas ao nível da ação, quem fala faz ou finge que
faz. Por isso, também é possível falar amor da boca pra fora, como se pode
dizer, correspondendo assim ao aniquilamento do amor por esvaziamento, algo tão
desejável em nossa época que elogia a palavra amor apenas quando ela é
transformada em balão de ar.
Fácil
acabar com o amor quando o transformamos em um efêmero sopro de voz.
“Fragmentos de um discurso Amoroso” de Roland Barthes talvez nos ajude a pensar
nisso quando se propõe a ser mais a enunciação do amor do que um livro de
análise sobre o amor. Talvez que o autor de um discurso amoroso que ande por aí
não deva se calar, mas inevitavelmente terá que rever o que diz para poder
expressar aquela parte do amor que não pode ser dita e que é a única que vale a
pena dizer. (Quando vejo o livro de Barthes nas mãos de gente jovem, sei que
estão apaixonados pela primeira vez e o leem porque o amor é algo tão estranho
que precisa ser estudado para ser suportado…).
Nosso
tempo se contenta com o efêmero sopro de voz e condena à morte a substância
delicada e ao mesmo tempo densa que está contida no amor. Amor é, afinal, o
nome de alguma coisa que deveria ser pronunciada com muito cuidado. Pois que se
mata um Deus quando se diz o seu nome em vão. E é por isso mesmo que dizer
“amor” hoje, quando se pode dizê-lo honestamente, porque seria bom que ele
existisse, e não apenas porque se acredita que ele exista, pode ser um ato de
redenção (naquele absurdo sentido de que podemos praticar o gesto impossível de
salvar até mesmo os mortos da injustiça…). E, como tal, um ato de revolução, no
seu sentido concreto, aquele ato que nos conecta com a tradição dos oprimidos
de que falava alguém como Benjamin, um filósofo que, em um tempo sombrio que
ainda é o nosso, lançou luzes no fim de um túnel sem fim…
O amor é
histórico
O amor
tornou-se a palavra que facilmente acoberta seu próprio contrário. Teríamos que
fazer sua anamnese, lembrando que o amor é histórico, que é uma ideia tão boa
quando perigosa. Remédio e veneno ao mesmo tempo. Talvez não exista palavra
mais contraditória ou mais astuciosa para garantir desvios necessários: os que
falam em nome do amor muitas vezes o falsificam com seu próprio nome. O ódio
infelizmente é sempre verdadeiro.
A
palavra, como toda palavra carregada de uma beleza ideal, pode servir para
acobertar seu contrário. Mas isso apenas quando o amor virou peça retórica como
se faz com outras palavras. Prestemos atenção em como os autoritários adoram a
palavra democracia, como os violentos usam cinicamente a palavra paz…
Mas quem
fala do amor também pode estar, de algum modo, fora da ordem seja por
adocicá-lo no sentimentalismo publicitário que vende coisas por meio de
sensações e simulacões de sentimentos, seja por intensificá-lo na paixão
amorosa possessiva e cruel que leva a crimes, a maldades de todo tipo que
amantes praticam uns contra os outros. Lembremos que o amor romântico até hoje
fez muitas vítimas porque, por mais belo e aconchegante que possa ser, ele
sempre teve um preço. As mulheres sempre o pagaram enquanto foram, com seu
próprio corpo, alma e ação, ao mesmo tempo, a moeda. O amor romântico
estabeleceu-se a partir de raízes intimamente ligadas à misoginia. Mas
lembremos ainda que pais e filhos também praticam muito desamor sob a cortina
de fumaça da palavra amor. O amor, se não for mediado por algo que poderíamos
chamar de “reflexão amorosa”, um estado de constante reflexão ética sobre o que
fazemos em seu nome, é um grande perigo na vida das pessoas, pois se presta a
toda forma de engodo.
Eu te amo
Fato é
que a palavra ficou gasta em meio a tantas contradições e não podemos mais
pronunciá-la honestamente. Quem hoje em dia pode dizer “eu te amo” sinceramente
e não desconfiar de um cinismo que não se deixa medir? O amor virou uma
mercadoria das mais baratas no mercado das relações humanas. Poetas honestos
não tem mais coragem de usá-la. Do mesmo modo, amantes honestos,
paradoxalmente, não se comprometem mais com ela. Os escolados na falsidade
diária dos relacionamentos sabem que “eu te amo” é sinal de alerta para a
mentira. A expressão gastou-se sem que tenha atingido sua própria verdade e
serve para colocar o vazio do eu, sua inexpressão repetitiva, em cena. Ao dizer
eu te amo, acreditamos que fazemos alguma coisa importante. Emitimos um
conteúdo. Mas será mesmo?
Por isso,
talvez seja bem mais honesto dar lugar entre nós a outros sentimentos menos
pretensiosos como, por exemplo, o respeito. A justiça que se assemelha ao amor
por sua condição de impossibilidade talvez seja muito menos impossível e faça
mais sentido.
Talvez
que, ao usar menos o termo amor, atualizando-o com menos eloquência por meio de
outras palavras, estejamos praticando mais amor.
O amor é
a descoberta do outro
E ainda
assim o amor não pode ser jogado fora. Embora se trate, no seu caso, de algo de
fato impossível, a antecipação prática desse ideal melhora o mundo. Torna esse
mundo menos inóspito, menos cruel. O amor é assim um gesto negativo da ordem
injusta do mundo. Talvez fosse essa a mensagem contida há tanto tempo no
diálogo de Platão chamado O Banquete no qual vários filósofos e homens
do seu tempo discutem o amor sem que nenhum deles consiga atingir uma definição
perfeita. As mulheres não estavam ali não apenas pela habitual misoginia dos
filosófos, mas porque o amor também não estava ali e os homens ali presentes
não eram capazes de entrar em contato com essa grande figura da alteridade
representada pelas mulheres e pelo amor. Sócrates é quem chama à memória a
explicação de Diotima, uma sacerdotisa, ou seja, alguém que entra em contato
com um deus, quem não poderia estar entre os meros mortais. O amor surgia nas
palavras de Diotima como o desejo de alguma coisa que não estava presente, algo
outro, algo que não estava jamais expresso e que nos chamaria para fora da
experiência habitual. Levando a sério o que disse Diotima, o amor seria
irrepresentável. E Sócrates sabia disso.
O que
quer dizer que nunca estamos falando de amor quando falamos de amor. O que vale
então para os pobres mortais é o desejo de amor. É o amor que queremos.
Ora o que
é o amor senão o desafio da alteridade? Seja político, ético ou estético, esse
desafio é o do encontro com o que não somos, com o estranho, com o que não se
submete à nossa compreensão limitada, com o que não estamos acostumados.
Certamente não pensamos que o amor seja hoje um desafio em sentido algum e é
mais certo ainda que para este desafio não possamos nos preparar, pois não há
mais tempo reservado para algo tão inútil. Não é assim que pensamos?
Pois é
assim que, devorados pelo ódio que está na base do utilitarismo, o amor acaba.
Amour
Por isso,
penso muito mais nas “provas do amor” do que nas palavras do amor. Para salvar
o amor teríamos que dar provas e essas provas hoje são políticas e éticas, são
provas que envolvem nossa razão e nossa emoção, provas que, pela ação, pudessem
nos salvar de nosso caos cognitivo e afetivo. Essas provas precisariam ser
concretamente amorosas. Precisariam ser mais do que discurso, mais do que
palavras ao vento como folhas de uma árvore morta que demoramos a perceber que
morreu.
Lembro de
Amour, o filme de Michael Haneke que assisti em 2012. Depois desse filme
fui ao cinema poucas vezes. Por meses tentei juntar os cacos da razão e da
emoção que tinham sobrado da experiência. O filme de Haneke expressa muitas
questões fundamentais sobre o amor, fala do amor, é o amor. Mas há uma questão
bem simples e séria que nos servirá pra sempre: o amor nunca será fácil e
provavelmente nunca combinará com o mundo que se entende com as coisas fáceis.
Márcia Tiburi
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